O caso RDP

Nos últimos dias acompanhámos o desenlace, pelo menos por ora, do caso Pedro Rosa Mendes na RDP. O desenvolvimento dos acontecimentos indica que o cronista foi afastado da rádio pública após ter expresso, no programa Este Tempo, opiniões muito críticas relativamente ao poder político em Angola num contexto de denúncia de que a RTP, numa emissão em Angola do Prós e Contras, se prestara a um serviço, nada público, de propaganda ao regime de Luanda.

No torvelinho que se seguiu, misturaram-se planos distintos e que convém distinguir. Em primeiro lugar, avaliar a crónica propriamente dita de Pedro Rosa Mendes no que diz respeito ao serviço público de informação e particularmente à RTP; em segundo lugar, avaliar a reacção de Luís Marinho, o “todo poderoso” detentor do «cargo de diretor geral de conteúdos de rádio e televisão dos atuais e futuros serviços que integrem as concessões de serviço público». Por fim, olhar ao motivo que desencadeou esta sucessão de eventos e que é uma já antiga, e sempre complexa, convivência do poder político de Luanda e os media portugueses.

1.
Ter Rosa Mendes visado uma emissão do formato Prós e Contras (mas intitulada Reencontros) não deveria suscitar incomodidades no quadro de um entendimento pluralista e independente do que seja o serviço público de informação em Portugal. Decerto sabemos que o Prós e Contras, programa de debate apresentado por Fátima Campos Ferreira, se institucionalizou bastante ao fim de quase 10 anos de emissões, o que resulta do seu considerável sucesso na tentativa de proporcionar umas horas semanais de debate alargado com e através da Sociedade Civil (lembro-me bem, por exemplo, do impacto que a emissão sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez teve por ocasião do segundo referendo).

E institucionalizar-se tem um preço: induz uma perigosa proximidade com a agenda dos interesses governamentais. Por exemplo, com vista a um reforço das parcerias e dos negócios entre os dois países, ao aceitar transmitir o programa de Luanda, e assim comprometer-se na promoção da imagem dos dignatários do regime, mas deixando de fora todas as personalidades malditas ou mal queridas, a direcção do programa teria de, inevitavelmente, assumir a consequência indesejável de uma subalternização do genuíno debate que dele se esperaria. Pois, fosse este levado a sério e  forçosamente acabaria por visar aspetos menos confortáveis do regime e inquinar os propósitos “amigáveis” do programa. A questão é se esse é um preço aceitável quando é tanto o que compromete angolanos e portugueses, cultural e historicamente, e também em milhares de biografias concretas. E, ainda, se é aceitável omitir o diferendo quando a omissão significa escolha de uns e desistência de outros, por uma lógica fria de conveniência. Suspender a atenção aos debates que acontecem em Angola, ou que acontecem cá porque lá não podem acontecer (pelo menos da mesma maneira), abstrairmo-nos dessa realidade por inteiro, é produzir um mau serviço público nacional de informação. Mais a montante: é um má atitude política, que não privilegia o povo angolano.

2.
Naturalmente, a crónica de Pedro Rosa Mendes desagradaria quem directamente tem responsabilidades sobre os conteúdos da RTP, e que assim se sente atingido, como quem directamente tem responsabilidade sobre os conteúdos da RDP, e que assim se sente comprometido com a crítica. O facto de Luís Marinho acumular estas duas responsabilidades num quadro geral de conteúdos de todo o serviço público explica a sua grande incomodidade. Simplesmente, não justifica nem legitima a sua reacção, e talvez ainda fique a sobrar uma questão sobre a natureza do seu cargo.

A crónica de Pedro Rosa Mendes visava o serviço público de informação e o imperativo de que outros poderes, designadamente da tutela política, não se imponham ao poder do debate claro e aberto entre todos os intervenientes relevantes. Tê-la feito na rádio pública, e portanto dentro do mesmo serviço público de informação que emite o Prós e Contras, só assinala a vitalidade do mesmo, poupando-se a que venham outros, de fora, pôr em causa a sua seriedade e a sua independência. Se Luís Marinho tinha melhores argumentos deveria tê-los exposto, publicamente de preferência, para que, com clareza, os pudéssemos debater. É que o que se passa na RDP e na RTP também me diz respeito. Mas, desastradamente, Luís Marinho preferiu cessar a divergência pondo termo à colaboração de Pedro Rosa Mendes. E isto é uma prática de silenciamento que por cá se leva a mal, mais ainda quando, ao que parece, se induz em erro o conselho de redacção da RDP através de uma alegada decisão de “há semanas” e que foi imediatamente posta em contradição por declarações de outros membros da direcção de informação da RDP diante da Entidade Reguladora para a Comunicação. O resultado de justificações tão atabalhoadas foi uma percepção de delito de opinião punido e em seguida disfarçado, com prejuízo não só para Pedro Rosa Mendes, mas para os restantes cronistas do programa de crónicas entretanto terminado, além de, no fim deste processo, a própria direcção de informação da RDP, que se viu forçada a demitir-se em bloco após o  incidente.

3.
Numa das declarações que Luís Marinho prestou na sequência deste caso, diz que «A nossa empresa é uma empresa livre e estamos muito habituados a crónicas e notícias contrárias às decisões da própria empresa». Não há razões para duvidar desta afirmação dita assim em termos gerais. Por exemplo, estou muito persuadido de que ninguém perderá a bonomia na direcção de informação da RDP, ou da RTP, se um cronista criticar lealmente, ainda que veementemente, um órgão ou quadro governamental, ou, fora do país, seja a chanceler de uma Alemanha, seja o presidente de uma França,  ou quem quer que seja. Apesar de tudo, a liberdade de opinião é apanágio dos nossos media como regra. Mas depois há o estado de excepção que se chama Angola. Um estado de excepção que dura desde há muito. Por exemplo, já em 1995 a Professora Anabela Carvalho apresentava ao Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais um Relatório intitulado «A Política Angolana e a Imprensa Portuguesa», reportando-se a dados de 1991 e 1992, portanto 20 anos atrás. Permito-me reproduzir umas linhas do resumo desse estudo:

«(…)analisa-se o papel dos media de um país – Portugal – para a política interna e externa de outro país – Angola. O objectivo fundamental deste trabalho (…) é estudar o papel que a imprensa portuguesa tem na dinâmica política angolana e nas relações políticas entre Portugal e Angola. A relação entre o sistema mediático português e os sistemas políticos angolano e português é equacionada a dois níveis: efeitos dos media sobre a decisão e a acção política, e modalidades de utilização dos media pelos actores políticos.»

Não poderia continuar mais actual, mau grado terem passado 20 anos, o tipo de questões abordadas neste estudo. Talvez mais interessante ainda seria verificar como evoluíram as relações, os papéis e os impactos nesta quadratura que envolve Portugal e Angola, políticos e media. Com a significativa adenda, que vai desassossegando com muita razão Pacheco Pereira e Francisco Teixeira da Mota, de que nos últimos anos, e como tendência que prossegue no futuro próximo, são cada vez mais importantes as posições de capitais angolanos nos grupos dos media portugueses. Previsivelmente, quando se privatizar a RTP os principais interessados deixarão de ser chineses e passarão a ser angolanos. Que implicações deveremos esperar desta tendência?

O que merecia a pena, talvez agora mais do que nunca, seria um Prós e Contras sobre a existência e o modo de condução de agenda bilateral Portugal/Angola a respeito das relações Media/Poder político, mas em território português, com todos os “prós” presentes, mas igualmente a comparência de todos os “contras”. Este Reencontros polémicos que se fizeram foram mais um desencontro com a essência do Prós e Contras. Faltou-lhe perder uma letra e animar um corajoso “recontro” de ideias.

Sobre André Barata

Filósofo, professor da Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior.
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6 respostas a O caso RDP

  1. Edmundo Dantas diz:

    Mas, afinal, o que é que distingue o Marinho, a Fátima e o Rosa Mendes ???

    Para mim é malta do piorio; todos, resumindo, avençados do grande capital .

    Edmundo Dantas

  2. jdanielribeiro diz:

    Concordo que merecia a pena André! Mas este reino é … da dinamarca…
    Um abraço

  3. Jorge Bravo diz:

    Pois!

    Mas “Onde quer que apareça a censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da Inquisição, há uma quebra nos foros da independência do homem, há uma insolência do passado contra a dignidade social da geração presente. Seja para o que for, a censura é um impossível político.” (1)

    Não obstante ser ” A censura, numa prática constante e presente através da cultura portuguesa, como dado negativo que é, contribuiu para forjar nossa maneira de ser e de estar no mundo, modelou comportamentos, estabeleceu preconceitos que vêm preocupando historiadores da cultura… (2)

    Mas como “Nada é impossível de mudar” para pior.

    “Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo.
    E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
    Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar”.(3)

    Mesmo assim somos o 33º lugar no indice RSF,2011.

    Não podemos por isso aceitar o amordaçar da nossa Liberdade de Expressão em troca de um prato de lentilhas é preciso repensar a peregrina ideia de privatisar a RDP.

    1)Alexandre Herculano
    2) Anele Reis in Portugal Socialista 1983
    3)Bertold Brech in Nada é Impossivel de Mudar

  4. André Barata diz:

    Está provado que o Jorge é um excelente citador. Qualquer dia começo a usar as citações que nos traz como epígrafes! Obrigado pelos comentários.

  5. Daniel Ribeiro diz:

    Mas não retira pertinência à sugestão que fazes…

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